Monday, April 20, 2015

"Você já parou de bater na sua mulher?": As armadilhas do enquadramento


Você é o governante de uma ilha com 600 pessoas, e tem uma escolha difícil pela frente: a população inteira foi contaminada por uma doença mortal. Os médicos conhecem dois tratamentos, e podem aplicar um ou outro:

Se o tratamento A for usado, 200 vidas serão salvas.
Se o tratamento B for usado, há 1/3 de chance de que todas as 600 pessoas sejam salvas, e 2/3 de chance de que ninguém seja salvo.

Qual tratamento você escolheria?

Esta questão é parte de um experimento clássico publicado em 1981, e os resultados são bastante claros: 72% dos sujeitos escolheram a alternativa A, e 28% escolheram a B. A maioria fez uma escolha conservadora, decidindo pela certeza de salvar algumas vidas, ao invés de correr o risco de perder todas. Mas será que, com base nisso, podemos concluir que as pessoas sempre tenderiam a tomar uma decisão conservadora nesta situação?

Um outro grupo de sujeitos teve que responder a pergunta formulada de outra maneira:

Se o tratamento X for usado, 400 pessoas vão morrer.
Se o tratamento Y for usado, há 1/3 de chance de que ninguém morra, e 2/3 de chance de que 600 morram.

E aqui o resultado foi completamente diferente: 22% escolheram a alternativa X, e 78% escolheram a alternativa Y.

Talvez você já tenha notado o ponto de interesse. As alternativas A e X são idênticas, no sentido de levarem ao mesmo resultado. Apenas o foco do seu enunciado muda: uma enfatiza as 200 vidas salvas, a outra enfatiza as 400 vidas perdidas, e essa diferença na formulação fez com que as pessoas tivessem reações completamente diversas frente a uma e outra. Quando se enfatiza as vidas perdidas, a maioria considerou que os 2/3 de chance de perder toda a população são preferíveis à certeza de perder 400 pessoas.

O que este experimento revela é o fato de que o ser humano não lida com as informações por si próprias, independente da maneira como elas são apresentadas. Se isso fosse verdade, as pessoas deveriam ter escolhido A e X em proporções semelhantes.

Este é um dos fenômenos relacionados ao conceito de "enquadramento", ou "enquadre" ("framing" em inglês), a ideia de que a realidade é percebida, organizada e comunicada de maneiras diferentes e parciais entre as pessoas, com diversos efeitos. A percepção de fatos, ideias, produtos, propostas, indivíduos ou grupos é sempre influenciada pela maneira como um assunto é abordado.

A aplicação disso na publicidade é óbvia: refrigerantes, cervejas, cigarros têm comerciais que associam o consumo destes produtos a todo tipo de emoção positiva. Na vida real, uma pessoa pode muito bem tomar Coca-Cola num velório, mas você jamais vai ver isso numa propaganda.

Nenhum cadáver à vista.

É do interesse das empresas responsáveis por esses produtos evitar que o consumidor pense em diabetes, cáries, alcoolismo, cirrose, câncer e morte quando pensam neles. Afinal, esta faceta da realidade faz mal para as vendas.
Agindo assim, elas moldam a percepção pública de seus produtos. Nossa percepção da Coca-Cola, quer tenhamos isso em consciência ou não, não é isenta, mas influenciada por décadas de campanhas publicitárias. A nossa percepção do próprio sabor do refrigerante não é isenta.

Mas não é apenas a publicidade que molda a maneira como enxergamos a realidade.


Por que na primeira notícia os sujeitos são "jovens de classe média", e na segunda são "traficantes"?
A escolha dessas expressões não é arbitrária. Frequentemente ela revela preconceito racial e social por parte do veículo, que por sua vez vai reproduzir e reforçar de maneira sutil os mesmos preconceitos nos leitores.
"Jovens de classe média" evoca no leitor a ideia de indivíduos com história, com pai, mãe, irmãos, amigos, que estudam, talvez trabalhem. A infração não os define, ela é tangencial à sua identidade.
"Traficante" reduz a identidade do sujeito à sua associação com a infração, e tende a retirar da mente do leitor o fato de que, tanto quanto qualquer outra pessoa, trata-se também de um indivíduo com uma vida e uma história.
É uma escolha de expressões que tem consequências sobre a simpatia do leitor.

A mesma coisa acontece quando se escolhe "manifestantes" ou "vândalos" para se referir às pessoas em um protesto, dependendo do posicionamento do veículo a respeito das suas causas. Quando se fala em corrupção enfocando a participação do governo no crime, se o veículo faz oposição ao partido no poder, ou enfocando as empresas envolvidas, se o veículo apoia o partido. Quando se escolhe falar em "regulação" ou "controle" da mídia.

* * * * * * * * * *

Vamos retornar à questão do título: imagine uma pessoa que faça parte da grande maioria que nunca praticou um ato de violência, e no meio de um grupo alguém lhe pergunta "Você já parou de bater na sua mulher?"

Trata-se de um exemplo extremo de pergunta tendenciosa. Ela pede uma resposta afirmativa ou negativa, mas quer a pessoa responda sim ou não, está indiretamente admitindo que já bateu na mulher, apesar disso não ser verdade.

E aqui vem a parte importante: talvez a resposta mais correta seja "Eu nunca bati na minha mulher", ou até mesmo "Eu nem sequer sou casado", desconstruindo a premissa da pergunta. Mas o problema é que independente do que se responda, pelo mero fato da pergunta ter sido enunciada uma possibilidade foi introduzida na cabeça das pessoas ao redor, a de que este indivíduo bate em mulheres.

É a mesma lógica deste exercício a seguir. Obedeça a instrução abaixo:

Não pense num elefante.

Você provavelmente não tinha um elefante em mente antes, mas agora tem. A linguagem pode direcionar o foco da nossa atenção, mas não pode retirar algo da nossa consciência. Essa é uma instrução praticamente impossível de ser seguida, porque a linguagem sempre evoca aquilo a que ela se refere, mesmo que esteja se referindo a algo no contexto de uma instrução expressa para não prestar atenção naquilo.

Perguntas tendenciosas e evocação de imagens mentais são parte importante do arsenal do debatedor desonesto. Os exemplos estão por todo lugar:

- Eu fiquei boquiaberto com o descaramento retórico na primeira vez que ouvi um religioso responder uma declaração de ateísmo com a pergunta "Mas por que você está bravo com Deus?". Essa pergunta evoca a seguinte situação: na verdade, a pessoa "sabe" que Deus existe, mas diz que não acredita por estar "brava" com ele, o que sugere imaturidade e volubilidade. Agora, ao invés de falar sobre os motivos legítimos de seu ateísmo, ela é impelida, por um mecanismo instintivo do ser humano, a explicar que não está brava, e assim cai na armadilha retórica e é colocada em posição defensiva.

- O mesmo raciocínio se aplica aos conservadores americanos que perguntam "Por que você odeia a liberdade?", ou "...odeia a América?", para quem critica iniciativas como a invasão do Iraque em 2003, ou a quebra da privacidade online sob pretexto de combater o terrorismo.

- E não só na forma de pergunta: alguém que se oponha a uma ação de determinado partido, ou de determinado sindicato, pode ser acusado de "estar contra o trabalhador", sem que os méritos da questão sejam abordados.

- Richard Nixon cometeu um erro histórico de relações públicas quando tentou negar seu envolvimento com o escândalo Watergate, indo para a TV e dizendo: "I'm not a crook." ("Eu não sou um pilantra"). Ao dizer isso, ele evocou a imagem do pilantra, e a possibilidade de ser um, e efetivamente passou a ser considerado um. Claro, como sabemos, ele realmente era pilantra, mas no interesse da sua defesa, o que fez foi completamente contraproducente.

- Na campanha presidencial de 2004, os republicanos conseguiram causar grande dano à imagem do candidato democrata, John Kerry, ao acusá-lo o tempo todo de ser um "flip-flopper", uma pessoa sem firmeza, que vive mudando de opinião. Esta associação o colocou na defensiva, e ele precisou combatê-la com menções frequentes a seu passado como militar e slogans que projetassem força e decisão, como "A stronger America begins at home", "A safer, stronger, more secure America", "The courage to do what's right for America", "A lifetime of service and strength". A necessidade de desfazer a imagem de político indeciso consumiu tempo, recursos, e desviou o foco dos assuntos em que ele teria vantagem, como diplomacia internacional, defesa do direito ao aborto.

- Lamentavelmente, uma área repleta destas mesmas estratégias é a dos movimentos sociais, feminista, LGBT, racial. Ao questionar as afirmações do Dr. Ben-Jochannan e outros acadêmicos afrocêntricos de que o filósofo grego Sócrates teria sido negro, assim como Cleópatra, de que os gregos teriam roubado a cultura africana, a historiadora Mary Lefkowitz recebeu não evidências que sustentassem estas teses, mas acusações de racismo.
Pessoas que questionaram a narrativa (eventualmente desacreditada) de uma suposta vítima de estupro na revista Rolling Stone, pelo evento ser perfeito demais em seus detalhes grotescos, foram chamadas de "apologistas do estupro", "pró-estupro" por blogueiras e jornalistas feministas que pregam que fazer perguntas sobre o caso seria "culpar a vítima", que as pessoas devem "sempre acreditar na vítima".


A postura destas ativistas assume que o dever de família, amigos e profissionais de acolherem de todas as maneiras possíveis a pessoa que se apresenta como vítima, e o direito do acusado à presunção de inocência, são mutuamente excludentes. Elas essencialmente estão dizendo que a acusação é toda evidência de que se necessita para atribuir culpa, e justificando a perseguição e o assassinato de caráter.

Muito do que passa por debate nessa área é apenas tentativa de enquadre através da imposição de uma linguagem, sem conteúdo relevante ou argumentos substantivos: “Pare de culpar a vítima!” / “Não confunda a violência do opressor com a reação do oprimido!” / “Check your privilege!” / “Don’t rape!” / "O verdadeiro humor faz piada com o opressor e não com o oprimido".
A partir do momento em que você consegue enquadrar a conversa de modo a se posicionar como vítima, como oprimido, está em posição de vantagem, e não precisa mais apresentar argumentos, basta repetir e reforçar a suposta hierarquia moral que conseguiu estabelecer. Os argumentos racionais perdem a força, e ganha quem conseguir rotular o adversário e provocar um curto-circuito no debate primeiro. Fredrik deBoer retrata esse estilo de retórica com precisão:

I meet and interact with a lot of young lefties who are just stunning rhetorically weak; they feel all of their politics very intensely but can’t articulate them to anyone who doesn’t share the same vocabulary, the same set of cultural and social signifiers that are used to demonstrate you’re one of the “right sort of people.” These kids are often great, they’re smart and passionate, I agree with them on most things, but they have no ability at all to express themselves to those who are not already in their tribe. They say terms like “privilege” or “mansplain” or “tone policing” and expect the conversation to somehow just stop, that if you say the magic words, you have won that round and the world is supposed to roll over to what you want.

Não é à toa que tantos ativistas fortemente motivados por ideologia, seja religiosa ou política, criticam a lógica e a racionalidade enquanto esforço sistemático, embora necessariamente imperfeito, de aproximação da verdade. Eles tiram proveito de um exploit bastante eficiente das nossas qualidades enquanto seres sociais, um loophole cognitivo: contextualizar um confronto de ideias de modo a evocar um combate físico entre forte e fraco, acionar o nosso instinto moral de que é injusto o grande atacar o pequeno.
É claro que essa estratégia resulta numa grande vantagem retórica, mas não produz resultado prático nenhum, e ainda incentiva o tipo de exploração que, a longo prazo, desgasta e leva ao questionamento  da validade destas causas. Basta ver o que se esconde e é justificado sob o nome de feminismo.

- Um último exemplo: mesmo nas relações pessoais, o enquadramento tem grande importância. Casais que, quando brigam, uma ou ambas as partes fazem repetidamente acusações como "você nunca" ou "você sempre" faz tal coisa, que se dedicam mais a caracterizar o parceiro de uma maneira negativa do que expor sentimentos e discutir as questões presentes, estão com graves problemas.

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Confundir o enquadramento com a realidade é sempre tentador, mas em determinado momento é necessário admitir que a realidade existe.

Correta ou não, a insistência do governo Dilma de que as menções ao impeachment são golpismo tem pouco efeito, uma vez que essa estratégia ignora as condições estruturais que favoreceram o aumento do volume e da intensidade das críticas à presidente: a economia vai mal, em grande parte por causa de decisões dela própria ao longo dos últimos quatro anos.
No contexto econômico enormemente mais favorável do governo Lula, sua habilidade de unir ou dividir a nação com palavras tinha poder muito maior.

Assim, a manipulação de narrativas não pode substituir o conhecimento, a capacidade de argumentação e crítica, nem o debate substantivo e intelectualmente honesto.

Inclusive porque pessoas mais bem-informadas e mais experientes num ambiente que valoriza o conhecimento e o debate intenso são mais resistentes aos efeitos do enquadramento. Como é dito no resumo deste experimento:

We find that while the behaviour of junior experimental economists is affected by the description of the decision task they face, this is not the case for the more senior members of our subject pool.

A manipulação de percepções ganha eleições, mas não governa um país. Ela populariza um produto, mas não administra uma empresa. Ela interrompe o debate, mas não vence a resistência contra a justa conquista de direitos.



5 Marcel R. Goto: "Você já parou de bater na sua mulher?": As armadilhas do enquadramento Você é o governante de uma ilha com 600 pessoas, e tem uma escolha difícil pela frente: a população inteira foi contaminada por uma doença ...

3 comments:

  1. Bem, Marcel, um texto ótimo - e perspicaz. Ao longo do texto você expôs os pormenores usando exemplos que incluíam todos os leitores ou grande parte deles. Assim, concordamos com todos os seus argumentos por fazermos parte deles, não poderíamos ir contra nós mesmos. Como tornou os leitores capazes de compreender os processos integrando-os, poderia introduzir qualquer visão pessoal ao fim que não haveria argumentos contra o texto, talvez contra a ideia isoladamente, mas caímos - num funcionamento parecido com o que você expôs - no ímpeto de se ater ao que foi proposto e não às partes isoladas. Técnica excelente! E concordo com tudo que disse, apenas acho que no último parágrafo, para não correr o risco da crítica que se relaciona às suas próprias exposições, poderia ser mais claro. Você não relacionou a última parte do texto com tudo que expôs, e já que estava sendo tão didático durante todo o texto, deveria ter mantido o mesmo no fim.

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